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Alguma Poesia — 90 Anos

A partir de uma modesta tiragem de apenas 500 exemplares — sob os auspícios de uma certa edições Pindorama, pura ficção jocosa —, “Alguma Poesia” (1930) iria assinalar a estreia de um autor que, então com 28 anos, revolucionou a poesia de língua portuguesa no século XX. Não é para menos. Com peças como “Poema de Sete Faces”, “Infância”, “No Meio do Caminho”, “O Sobrevivente”, entre tantos outros textos decisivos, o livro demonstra já a enorme maturidade do jovem Drummond, ainda estabelecido em Belo Horizonte.

Dois anos antes, Drummond havia causado escândalo entre as hostes literária ao publicar, na “Revista de Antropofagia”, o poema “No Meio do Caminho”. Era o início da carreira de escândalo do poema, reconstruída na década de 1960 pelo próprio autor em um livro que reuniria os ataques, as paródias e as contendas relacionadas ao poema.

Mas para além da polêmica, “Alguma Poesia” já apresenta aquilo de melhor que Carlos Drummond de Andrade iria oferecer ao longo de quase 60 anos de uma das carreiras mais fecundas da literatura moderna: o lirismo, o humor, o tom mediativo e irônico, a observação desencantada dos fatos, o sensualismo, a reflexão aguda e altissonante sobre o amor e a morte.

* Texto publicado na 1ª edição, 2ª reimpressão, do relançamento de “Alguma Poesia” pela Companhia das Letras.

Alguma Poesia: 90 anos — Por Edmílson Caminha (escritor, jornalista, professor de literatura brasileira e de língua portuguesa)

90 ANOS DE “ALGUMA POESIA”: O PRIMEIRO DRUMMOND

Em 1930, o povo brasileiro vivia momentos de incerteza e de apreensão. Chefe de um levante que vencera resistências a que se mudassem normas políticas e econômicas em vigor desde a queda da Monarquia, Getúlio Vargas depõe o presidente Washington Luís, declara o fim da “República Velha” e assume o poder à força do que entraria para a história como a “Revolução de 30”. Na literatura, são publicados o romance “O Quinze”, da jovem cearense Rachel de Queiroz, e três livros que viriam a ser importantes nos anais da poesia brasileira: “Poemas”, primeira obra de Murilo Mendes; “Libertinagem”, que reúne a produção modernista de Manuel Bandeira, e “Alguma poesia”, de Carlos Drummond de Andrade.

Sem dinheiro para mais, o mineiro de Itabira, então residente em Belo Horizonte, paga do próprio bolso o custo de 500 exemplares, com o selo imaginário das “Edições Pindorama”, que lhe empresta o amigo escritor Eduardo Frieiro. Não passaria pela cabeça do poeta a mudança, apenas quatro anos depois, para o Rio de Janeiro, onde trabalharia, de 1934 a 1945, como chefe de gabinete do ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema, seu fraterno amigo. Viveu no Rio até a morte, em 1987, doze dias depois de perder a filha única, Maria Julieta. Poeta essencialmente mineiro, pode-se considerar Drummond um prosador “carioca”, pela visão de mundo com que escrevia crônicas para o “Correio da Manhã” e, depois, para o “Jornal do Brasil”.

Extremamente rigoroso com o que produzia, o itabirano já organizara pelo menos quatro coletâneas de poemas, alguns saídos em jornais e outros lidos apenas por quem lhe era próximo, sem que tivesse coragem bastante para publicá-los em livro: “Teia de aranha”, “Os 25 poemas da triste alegria”, “Minha terra tem palmeiras” e “Preguiça”. Até que se resolve, em 1930, a lançar “Alguma poesia”. Embora com título modesto e despretensioso, o livro não agrada a críticos afeitos a desancar os novos autores desde a Semana de Arte Moderna, em 1922: para um deles, o volume devia chamar-se “Alguma tipografia”, pois de poesia, mesmo, ali não havia nada…

São 49 poemas (ou 56, se contados os oito poemetos conjuntamente intitulados “Lanterna mágica”). E já começa com um que se tornaria famoso, o “Poema de sete faces”, em que se leem versos hoje ditos de cor por milhões de leitores: “Vai, Carlos, ser ‘gauche’ na vida”; “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.” Neste último verso, o ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna vê o indicador do primeiro dos três sentimentos que podem resumir a evolução da poética drummondiana: “meu coração maior que o mundo”, a que se seguiriam “meu coração menor que o mundo” (no poema “Mundo grande”, do livro “Sentimento do mundo”, de 1940) e o equilíbrio que representa a plenitude do poeta, “meu coração igual ao mundo” (no poema “Caso do vestido”, do livro “A rosa do povo”,  de 1945). Lembre-se haver sido Affonso Romano de Sant’Anna o primeiro a defender uma tese de doutorado sobre a obra do conterrâneo mineiro, “Drummond, o ‘gauche’ no tempo”, escrita em 1969, aos 32 anos de idade, e publicada em 1972.

No segundo poema, “Infância”, veem-se dois elementos – a família e a terra natal – que marcarão com grande força a obra do poeta, sobretudo a trilogia “Boitempo”, “Menino antigo” e “Esquecer para lembrar”. Mais à frente, em “Itabira”, declara Drummond: “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”. É o reconhecimento do destino que leva a cidade a viver dos milhões de toneladas de minério de ferro, suficientes, na hipérbole do visconde do Serro Frio, para abastecer “quinhentos mundos durante quinhentos séculos”. Com 1385 metros de altitude, a montanha de ferro desapareceria, transformada, pela exploração da jazida, em uma cova com 200 metros de profundidade. Esse, o tema do livro “Maquinação do mundo: Drummond e a mineração” (São Paulo : Companhia das Letras, 2018), em que o crítico literário José Miguel Wisnik, drummondiano ilustre, analisa o célebre poema “A máquina do mundo”, em busca dos sentimentos do poeta quanto à condição mineral da terra em que nasceu.

Nenhuma página de “Alguma poesia” gerou mais polêmica do que “No meio do caminho”, onde pôs Drummond uma pedra que o acompanharia pela vida afora… A repercussão foi tamanha que ele próprio organizou um livro sobre os versos que escrevera: “Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema”, publicado em 1967. A intenção, como ele próprio me disse, não fora gerar polêmica, mas tentar fazer poesia com poucas palavras desprovidas de essência poética, como “pedra”, “caminho”, “acontecimento”, “retinas”. O poema se encontra em quase todas as antologias drummondianas, e foi traduzido para muitas línguas, entre as quais o latim e o tupi.

Passados 90 anos, o primeiro livro de Drummond continua a despertar a atenção da crítica e o interesse dos leitores, pela muita poesia que nele se descobre, apesar da singeleza do título. Sobre um poema que tentava compor mas que se recusava a nascer, diz o poeta que a poesia daquele momento inundava a sua vida inteira. A dele e a nossa também, pela grandeza humana, pela força dos sentimentos e pela magnífica obra com que, desde “Alguma poesia”, Carlos Drummond de Andrade soube fazer o mundo melhor e a vida mais bela.

*Edmílson Caminha

Clique aqui e faça download do artigo “90 Anos de ‘Alguma Poesia’: o primeiro Drummond”, de Edmílson Caminha.

Assista a palestra “90 Anos de ‘Alguma Poesia’: o Primeiro Drummond’, ministrada por Edmílson Caminha:

Poemas

Drummond escreveu “Alguma Poesia” sob o ímpeto do movimento modernista, que no Brasil ganhou fôlego com a Semana de Arte Moderna, em 1922. O primeiro livro do itabirano contava com versos produzidos entre os anos de 1925 e 1930. Ao todo, o volume conta com 49 poesias:

  • Poema de Sete Faces
  • Infância
  • Casamento do Céu e do Inferno
  • Também Já fui Brasileiro
  • Construção
  • Toada do Amor
  • Europa, França e Bahia
  • Lanterna Mágica
  • A Rua Diferente
  • Lagoa
  • Cantiga de Viúvo
  • O que Fizeram do Natal
  • Política Literária
  • Sentimental
  • No Meio do Caminho
  • Igreja
  • Poema que Aconteceu
  • Esperteza
  • Política
  • Poema do Jornal
  • Sweet Home
  • Nota Social
  • Coração Numeroso
  • Poesia
  • Festa no Brejo
  • Jardim da Praça da Liberdade
  • Cidadezinha Qualquer
  • Fuga
  • Sinal de Apito
  • Papai Noel às Avessas
  • Quadrilha
  • Família
  • O Sobrevivente
  • Moça e Soldado
  • Anedota Búlgara
  • Música
  • Cota Zero
  • Iniciação Amorosa
  • Balada do Amor através das Idades
  • Cabaré Mineiro
  • Quero me Casar
  • Epigrama para Emílio Moura
  • Sociedade
  • Elegia do Rei de Sião
  • Sesta
  • Outubro 1930
  • Explicação
  • Romaria
  • Poema da Purificação

Drummond, Mário de Andrade e “Alguma Poesia”

Carlos Drummond de Andrade aprendeu cedo a lidar com a crítica. Em 1928, após publicar o poema “No Meio do Caminho”, foi furiosamente atacado por aqueles que não compreendiam o fazer poético daquele que viria a se tornar um dos maiores escritores da língua portuguesa.

Em 1930, com o lançamento de seu primeiro livro, “Alguma Poesia”, Drummond viu mais uma vez o seu trabalho dividido entre os críticos. Porém, o primeiro artigo sobre o recém-lançado volume buscou exaltar as qualidades dos versos drummondianos.

Essa primeira análise crítica foi escrita por Mário de Andrade, amigo de Drummond e um dos principais incentivadores para o lançamento de “Alguma Poesia”. E detalhe: o texto foi publicado pelo jornal Estado de Minas (com o título ‘‘Apareceu ontem o livro de Carlos de Drummond de Andrade”), que a época era concorrente dos jornais nos quais Drummond trabalhava e colaborava.

“’Alguma poesia’ é uma surpresa agradável que talvez reanime os nossos intelectuais. No livro, diga-se de passagem, a emoção, por mais profunda, não se descontrola em derramamentos líricos. Podendo viver, portanto, sem excessos – clara e forte, como nasceu. Na verdade, é essa, inatamente, a mais humana das feições poéticas.” (Mário de Andrade, em ‘‘Apareceu ontem o livro de Carlos de Drummond de Andrade”)

Mário de Andrade voltaria a mencionar o primeiro livro drummondiano em outros momentos, como no artigo “Puro, sem Mistura” — publicado originalmente no jornal Diário Nacional, em 22 de junho de 1930. O texto pode ser conferido no livro “Alguma Poesia – O Livro em seu Tempo”, organizado por Eucanaã Ferraz e publicado pelo Instituto Moreira Salles.

No livro “A Lição do Amigo – Cartas de Mário de Andrade a Carlos de Drummond de Andrade”, publicado pela Companhia das Letras, podemos ver um pouco mais dessas relação entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Inclusive com a análise do primeiro sobre o livro de estreia do itabirano:

Curiosidades sobre o livro “Alguma Poesia”

Versos na voz do Poeta

O Instituto Moreira Salles, por meio da Rádio Batuta, disponibiliza uma série de gravações com Drummond recitando alguns dos seus poemas. Essas gravações também foram utilizadas na montagem da exposição itinerante “Drummmond: fala, fala, fala”, desenvolvida em parceria com a Universidade Federal de Itajubá — Campus Unifei e Pedro Graña Drummond, neto do escritor itabirano.

Clique aqui e escute Drummond recitando as suas poesias.

Mídia

Para celebrar os 90 anos de lançamento de “Alguma Poesia”, preparamos alguns vídeos sobre a obra. Tem poemas recitados por alunos do Programa Drummonzinhos, assim como comentários da superintendente da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade, Martha Mousinho, e da gestora do Memorial Carlos Drummond de Andrade, Solange Alvarenga.

Poemas

Comentários

Para conhecer mais sobre Carlos Drummond de Andrade

Ficou curioso e quer saber mais sobre o poeta itabirano? O Instituto Moreira Salles conta com um vastos acervo da obra drummondiana e que pode ser acessado aqui.

Outra opção é conferir alguns estudos sobre o trabalho do itabirano, como os listados abaixo:

E, claro, não se esqueça de se aprofundar nos poemas, crônicas e contos. Clique aqui e confira a bibliografia completa de Carlos Drummond de Andrade.